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Cante Andarilho

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Cante andarilho: aquele que caminha cantando, por sendas, montes, vales...; pés que voam em terreiros e sobrados e oceanos lavrados como se terras de trigo; pés que rasgam a noite (seus calores e temores); ouvidos que surpreendem cantigas e sortes de raparigas, cantos idos de idos tempos, canções que são gente com passado e com presente, palavras sentidas (e sofridas) que falam dos amores e desamores de que se fazem os dias, das alegrias de feiras e romarias...

Este cante andarilho é, no fundo, uma forma de estar, sentir e (re)inventar o mundo. Ato compulsivo, vital, curioso, fascinado, apaixonado, errante, “acidental”, que (em viagens de corpo e espírito), caminhando espontaneamente, sem destinos previamente traçados, busca uma permanente e renovada descoberta do(s) “outro(s)”, seja este a beleza singela de uma melodia, a espontaneidade e arrojo experimentalistas da descoberta de sonoridades “outras” em simples objectos do quotidiano ou a partir de elementos da natureza, a transparência (complexa) de um sentimento feito poema musicado, a surpresa de um ritmo irreverente, o “tempero” de uma cadência melódica, a originalidade de um acorde, o eco infindável de um brado que brota do fundo da terra, um “estilo” de entoar e “vestir” a palavra cantada, o exorcizar cómico-trágico de medos e anseios, a singularidade de um falar local, a musicalidade de um estado de alma, um sentido atento e crítico de apreensão do mundo...

Nesta música dos dias perpassa sempre o fervilhar interiorizado de um ciclo quotidiano:

A dureza e crueza suadas dos campos; o rodopio dançante e enamorado dos terreiros; a saudade e melancolia experimentadas junto ao mar (lugar dual, feito de esperanças e incertezas, encerrando partidas e regressos (?), lágrimas e sorrisos); O mistério simultaneamente tentador e atemorizador das encruzilhadas; a transparência lúcida do “altinho” (refúgio e local de reencontro do “ser” com a sua essência); A limpidez e espontaneidade da cumplicidade amorosa das fontes; o aconchego familiar da lareira (onde desfilam, pela noite dentro, estórias de cavaleiros corajosos e donzelas apaixonadas, velhas maliciosas e meninos indefesos, pais irredutíveis e filhos ambiciosos, irmãos invejosos e egoístas, gigantes assustadores e fadas benevolentes, uma  natureza enigmática que fala, grita e sente, ora amiga preciosa, ora poderosa oponente dos desígnios mortais...); A certeza segura e constante de um “soninho descansado”, em que o embalo maternal, quente e encantatório, feito melopeia mágica, afasta o “homem do saco” ou o “bicho-papão”;

A solenidade e a sofreguidão dos momentos mais difíceis e desafiantes, em que a aguda consciência do homem em relação à sua condição de ser efémero e limitado dá lugar à invocação fervorosa e repetida da bondade ou da piedade e perdão divinos...

“Povo que canta não morre”, dizia Michel Giacometti, musicólogo italiano que calcorreou incansavelmente este nosso chão, buscando raízes fundas desse “espírito português” de que, já em meados de Oitocentos, nos falava Garret, ao levar a cabo a sua recolha de romances tradicionais.

Contactos: Lucinda Oliveira: 964 150 417